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sexta-feira, 9 de setembro de 2022

O Outro Lado do Espelho

 


O Outro Lado do Espelho



Elnoke estava penteando o cabelo diante do espelho no banheiro, atividade rotineira após o banho da noite, num lapso de segundos seu corpo caiu inerte no chão e sua alma foi sugada para dentro do mundo inverso e misterioso do espelho que estava a sua frente, consciente e assustado percebeu a própria alma flutuando num universo unidimensional a olhar o próprio corpo inerte no chão no outro lado, ele tinha deixado seu mundo real e  tridimensional. Era um acontecimento factual, inusitado, sem o consentimento próprio, uma fatalidade desesperadora, tentou retornar, mas não conseguia sair daquele universo silencioso, misterioso e frio, um mundo de todas as inversões. A começar, sentia que a sua alma asfixiada, um lugar que oprimia tudo dentro de um plano unidimensional  O senso de localização o norte parecia ser o sul e o sul norte,  a impressão de que não podia mover-se para frente e para trás, mas apenas deslizar-se para cima e para baixo  como grudado a uma parede de vidro.

 

Algo extremamente estranho e agonizante.


Um anseio de voltar ao mundo normal emergiu do coração de Elnoke, mas como? É impossível viver em um mundo de coisas invertidas, nas entranhas desse espaço monótono o tempo retrocedia ao invés de avançar, e da maturidade passava para uma infância sem lógica, até tornar-se um espermatozóide, uma decadência do senso comum, um processo de retrocesso, um caos, quando as coisas parecem sair da sua ordem normal.

Ele pensou como pode um homem viver fora da lógica da ordem primaria em que as coisas existem para funcionar.


Mas Elnoke conhecia seu mundo real, viveu nele, seu corpo interagia com as funções de um universo verdadeiro,  agora estava ali, na agonia das coisas contrárias,  olhou atrás de si viu o sabonete, mas já não era um sabonete, mas etenobas, que nome estranho, e que artefato estranho, sem cheiro, só uma forma aparente, se tomasse sua identidade, seria agora seu nome "Ekonle" que insolência!  A função da vida é manter as coisas na ordem lógica de suas funções verdadeiras, o mundo não subsiste pela ilusão e nem pode permanecer real pelo engano. Essa é a lei para a vida, a cosmovisão percorre a biogênese e permanece como a lei da unidade recíproca para manter a ordemcda continuidade.

Permanecer num mundo de coisas insólitas e contrárias á verdade e cometer um suicídio existencial.
E então, o que fazer? Elnoke mergulha no deslize abaixo que parece ser pra cima. Seu mundo parecia de cabeça pra baixo, como as funções de seus olhos fossem alteradas, de baixo pra cima e de cima para baixo, que loucura, lembra-se de maçãs, e o que antes amava, agora odiava, pelo menos ainda tinha um resquício de sentimento se é que era sentimento, talvez apenas repulsa, maçãs eram objetos obsoletos sem sabor naquele mundo, e ainda sem calor e sem frio, Como seria a água do mar? Afinal há pessoas e um mar? ou apenas reflexos delas, sem vida, sem sonhos, sem ideais. Que coisa complicada, a flutuação levou o pobre homem que é só alma, para um mundo escuro, um lugar que o espelho não alcança, então precisou voltar, para a posição geográfica onde o espelho reflete a realidade.


No desespero de sair daquele mundo perturbado cheio de contrários e imitações, onde o verde ainda era verde e o branco ainda branco, onde a luz brilha e retorna na a natureza sua fonte como luz, sem sofrer alterações nos fundamentos da essência em que existe, Elnoke nota que a luz consegue sair fora do mundo avesso no enigma do universo do reflexo, mas uma alma na sua natureza insípida e apagada permanece ali naquele duplo imaterial de contradições, um jazigo onde absolutos, essências e realidades ficam expostos a gravitação de todas as decadências. Vejamos o mundo dos sentimentos, essa força de oposição de um universo alienado, símbolo da ausência de todos os princípios, o mal pode ser chamado de bem, o ato pode parir a morte, a mentira pode ecoar como uma verdade, pois o inverso sempre será uma contradição, a tese e a antítese não se misturam no mundo real, se isso ocorrer, há um colapso no sentido da realidade do algo, mas no mundo do espelho as coisas podem ser invertidas, mas essa é a inversão dentro da ilusão.


Elnoke lutava contra uma dissonância cognitiva, o ser favorável num mundo ilusório ao que seria oposição no mundo real, então há uma luta interior, sua personalidade que é interior precisa corresponder-se ao reflexo do que é, e neste ponto, o da imagem que corresponde a realidade, o reflexo ainda transmite uma verdade, mas ao refletir a palavra escrita, há uma violação semântica, um homicídio do sentido e da conexão dos significados reais.


Não pode existir essa distorção no mundo real, a imagem da cruz por exemplo deve corresponder a sua essência semântica , o termo "zurc" não corresponde a imagem, a quebra da harmonia entre fato e verdade é potencialmente destrutivo , o mundo das inversões em que Elnoke estava, destruía todo o sistema semântico, e então comprometia a sua própria identidade, ele era em imagem, mas ninguém mais o conhecia pelo sua identidade verbal.


Elnoke percebia a impossibilidade de viver nesse universo inverso, a importância de ter um corpo com as sensações e todos os mecanismos biológicos que interagem com o mundo físico. Acima de tudo viver dentro de realidades objetivas, a verdade imponente como principio aplicado a cada fator tal como é.
O universo dentro do espelho era apenas uma imitação do mundo, não o real, tinha algumas verdades refletidas, mas eram subjetivas e sem essência. Uma fotografia móvel, mas sem realidade. Uma maçã  tinha aparência de maçã, mas não tinha qualquer sabor, e no que diz respeito às virtudes mais elevadas elas não existiam. Apenas imagens, e Elnoke estava asfixiado em um sistema sem sensibilidade, pois a sensibilidade é o que mantém o coração conectado com a essência  de todas as coisas.


Por trás da realidade, a vida do pobre homem preso ao reflexo deixava uma advertência: Quem na ilusão enxerga a verdade encontra a esperança e quem na verdade enxerga a ilusão é tentado a perdição.
Elnoke percebia isso, além do mais notava que perdia todos os seus sentimentos, a noção do instinto do ser parecia a única coisa dentro de si.


O espelho é um universo ambíguo, pois e capaz de revelar o sorriso de um rosto e ao mesmo tempo esconder a tristeza do próprio coração.
A experiência de um mundo com forma projetada de imitação não de realidade objetiva tornou-se um perigo.


A realidade mostra a beleza das flores e o perfume de cada uma delas, o mundo do reflexo está condicionado a mostrar a aparência das flores e nada mais.
Ele precisava se livrar daquela prisão, onde não podia mudar nada, ninguém consegue alcançar a felicidade sem mudar as coisas a sua volta, um universo asfixiado por fatos e ambigüidades,  a luta de Elnoke era a libertação, libertar-se de uma condição servil de alienação, precisava voltar ao corpo, integrar-se novamente ao mundo real, nada mais do que uma transcendência aos fatos, sem, contudo perder a visão metafísica da existência.

Quando perdemos o sentido da verdade nunca alcançamos uma utopia, pelo contrario percorremos o caminho da destruição


Elnoke batia forte pelo lado de dentro tentando quebrar o espelho e sair, mas era como um impotente diante da luta por libertação precisava da ajuda de algo ou alguém que pudesse entrar e sair daquele mundo estranho. Só então notou pela janela, uma estrela forte, o planeta Vênus, trazendo atrás de si um fulgor, era a aurora, e com ela o sol resplandecente que bateu sobre o espelho, e sua luz entrando e saindo, Elnoke agarrou-se sobre partículas e ondas, e conseguiu sair daquele universo obsoleto, o corpo em estado de inércia recebeu novamente a consciência, Elnoke olha para o espelho e vira as costas a ele, é o mundo real que ele deseja, respiração profunda, o cheiro das flores, a brisa refrescante os pássaros cantando, o sorriso no rosto. É a vida como deve ser vivida e os fatos como devem ser aceitos.

 

Extraído de: Contos Ordinários e Extraordinários

Autor: Clavio J. Jacinto

Direitos reservados.




 

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