O Funeral
Foi um acontecimento inusitado, épico, pra falar a verdade memorável! Aconteceu muitos anos atrás numa cidadela esquecida pelo tempo, um lugar pacato cheio de pessoas simples, num canto esquecido deste planeta. Eu estava lá, presenciei o acontecido e registrei por se tratar de um acontecimento que foi singular, que marcou a minha vida e de todos os que estavam presentes. Certo homem de meia idade, muito conhecido naquele lugar, um bom homem exemplar, sua reputação não era maior por causa de um problema que há no homem moderno: insensibilidade. Essa doença de caráter que tanto amortece nossos corações e nos fazem parecer pedras ambulantes dotadas de órgãos vitais apenas para andar, comer, dormir e respirar. O homem faleceu de forma inesperada, uma surpresa do destino que a morte súbita tenha encontrado aquele homem naquela manhã de outono. De repente a cidade ficou em choque, não é um fato inédito que de corações empedernecidos venha nesses momentos trágicos serem sacudidos em acontecimentos e tragédias que ressuscitam do coração de pedra, corações assolados por uma boa medida de espanto e tristeza. O pobre homem morreu deixou um legado de admiração por sua sensatez e sabedoria, mas o que serve tudo isso para uma sociedade egoísta e insensível? Bem, a propósito, num funeral todos querem manter o status de que são humanos, até porque surge aquele sentimento de que a morte devora o outro e nos poupa. Se há um lugar onde as pessoas se sentem supostamente mais humanas é frente a um cadáver exposto, apresentando a mensagem eloquente e silenciosa, onde muito se aprende sem que o cadáver diga uma única palavra. Ali estão os que derramam lágrimas e os que trazem os elogios, tudo isso mais por remorso escondido do que por sentimentos de perda.
Mas o falecido deixou uma mensagem escrita, era sua ultima vontade, o ministro religioso, responsável pelo rito de despedida frente a comunidade, ficou meio constrangido, era aquele um momento que poderia revelar a sua importante erudição religiosa frente aos presentes que estavam ali naquele tão celebre momento onde famílias se reúnem e se lembram que os parentes existem, o funeral é um retorno a realidade nua, quando toda a vida os homens se vestem de indiferença cadavérica, no final das contas não sabemos quem está mais morto, o cadáver ou os que fazem seus últimos elogios a ele.
O pequeno escrito, uma espécie de testamento que o falecido deixou, inverteu o papel das circunstancias. O morto falando aos vivos e o ministro religioso com a carta na mão, olha muito sério e meio constrangido para a multidão ao redor da urna funerária onde o falecido jazia como o belo adormecido no centro das atenções, as vezes o morto perdia a posição do centro das atenções, quando aparecia uma senhora, coisa rotineira em funerais, aos prantos gritando e chorando, tentando assustar o falecido com uma chuva de lágrimas e gritos, mas era aquele momento de silencio suspeito, explicar o sucedido, e a surpresa da ocasião, quebrado a tradição social, onde todos esperam ouvir um ministro religiosos abrir a caixa de elogios, para revelar todas as virtudes e benefícios que o morto fez aos vivos, recheando a mensagem com um belo sermão espiritual de consolo aos vivos.
Abrindo a carta, escrita à punho, quando o bom homem ainda vivia, o ministro religioso, faz uma pose de erudito, olha firme para a multidão e então explica, que o falecido que dar um discurso em seu próprio funeral.
Abrindo a carta, toda a multidão ao redor do caixão, permanece atenciosa e séria perante o ministro religioso, essa novidade faria com que o evento inédito viesse enriquecer a historia e a tradição da comunidade.
Eis a mensagem:
“Meus queridos amigos e familiares, vivi toda a minha vida nessa cidade, fui um homem honesto, ajudei quem precisava de ajuda e sempre aconselhei quem precisava de ajuda. Não preciso de vossas flores, pois um abraço em vida valia mais do que essas flores que agora me são inúteis. Porque a multidão presente, muitos anos vivi sem que ninguém se lembrasse de mim, e um sorriso que pudesse receber em vida vale mais do que todas as lágrimas recolhidas na minha morte. Quantas vezes estava eu sentado na praça, e vós passastes de largo, pois a pressa do compromisso era mais importante do que um breve momento ao meu lado. Vivi eu tanto tempo, nunca recebi da maioria de vós um presente, e hoje quando minhas mãos não podem colhe-las, me trouxeram flores, era mais importante que ouvisse em vida uma palavra de amor, do que mil palavras de pesares que já não posso ouvir. A ausência do calor de uma amizade é mais importante do que a vossa presença na frieza da morte. Eis muitos de vós anunciam uma saudade no futuro quando no passado nem sequer se lembraram de mim. A porta da minha casa estava sempre aberta, mas é na porta do cemitério que vocês irão entrar para me acompanhar até minha sepultura. De nada me vale os aplausos que não posso ouvir, de nada adianta a admiração que não posso prestigiar, de nada adianta a amizade que morreu por não ser cultivada e só germina por um momento quando um amigo morreu.
No meu silencio, nesse mar de inércia, o teatro dos sentimentos não valem, minha partida segue para o mundo do esquecimento, e ao me homenagearem, colocarão meu nome em uma rua da cidade. Aqueles que irão sugerir isso são os mesmos que passaram por mim na mesma rua e nem sequer me deram um bom dia. Minha partida para um mundo distante é apenas uma jornada em um caminho amplo onde vós todos também irão. Os dias se passaram e as oportunidades se foram, comigo vão meus conselhos e minha sabedoria, não é perda de uma pessoa que se lamenta, na verdade o motivo da lamentação é outro; a falta de gratidão, pois os que tiveram a oportunidade de terem um amigo verdadeiro tiveram a oportunidade de ser feliz, um homem de honra dará sempre honra para seus amigos, um homem sábio dará sempre sabedoria para seus amigos, um homem de virtudes ensinará a virtude para seus amigos, o legado que deixei a cada um vós é mais importante do que os prantos e lamentações, mas se não há legado, então vossa tristeza é a reação do vosso arrependimento, muitas mortes ensinam que o cadáver perdeu menos do que os vivos.”
No fim da leitura do discurso, os que estavam presentes se sentiram ofendidos, e o cadáver ficou sozinho no funeral e um silencio permaneceu como um muro entre a saudade e o desespero para sempre...
C. J. Jacinto
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