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domingo, 9 de outubro de 2022

Corpo de Calcario

 

corpo de Calcário

 

Autor: Clavio J. Jacinto



Havia no deserto de Etten um recluso, foragido do mundo e da civilização, homem dotado de sútil percepção da vida, magro e maltrapilho, a voz rouca e uma barba que arrastava ao chão. Seu nome era Angst.


Notável pensador solitário poeta de todas as probabilidades e profeta sem visão futurística, o Apocalipse estava velado aos seus olhos, o agora era sua única experiência de vida.


Angst é o pai de todas as angústias, voz que clama no deserto, pesa mais fardo das aflições e naufraga no mar obscuro de todas as ansiedades.


Amante de livros, leitor nupcial, em todos os sentidos, uma sentinela acorrentada pelos grilhões da vida.


A voz rouca de Angst era a voz dos homens, cada um deles, na nobreza do pensar que corresponde o clamor da civilização:


"Eu morri. Em Teu sopro de neblina e de luz eu vibro, Céu, como se carregasse em mim o filamento da criação. Como se todos os fios invisíveis do ser estivessem entrelaçados no cosmos enchendo meu peito!"


Pasmo o pensante solitário era a voz de todos os homens, caudaloso rio que verte até o fim do mundo,  trapo restaurado pela esperança que repousa em coração aflito, e da tempestade furiosa  de areia, assombração de furiosas náuseas, ele ouviu o atenuante filósofo das sombras:


"Pele por pele e tudo o que o homem tem dará por sua própria vida."


Esse é o labirinto da vida, o clamor do calcário, alma sólida em vertigens verticais, maltrapilho homem do ermo.


Angst tomou um livro de sua austera biblioteca, imponente voz arauto de todas sonolências, o despertar do pensamento para a verdade, quem busca os fatos não fica preso ao grilhões do engano.


Terríveis e sonâmbulos sentimentos sem sonhos, o crepitar de estrelas de fogo fátuo , e o que mais?


Angst se senta no seu trono, a sepultura, e abre o livro e lê a sentença de todos os breves mortais:


"Tu és pô a ao pó retornarás"


A vida é realizada na realidade da solidão, ela é feita de oportunidade e decepções, todos temos uma jornada infinita, um caminho a percorrer com coragem, a vida é para os corajosos, é muito fácil celebrar nossas conquistas difícil e permanecermos emocionalmente equilibrados em nossas derrotas.
Na abertura do livro em uma página alheia fincada nos papéis amarelados como livros espremidos num acervo antigo, Angst leu:


"O que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca, e é preciso andar muito para se alcançar o que está perto."


Levantando-se de seu assento de descanso, lugar da carne feita pó, inclinações táticas da vaidade, sentimentos atávicos de orgulho, Angst percorre com os olhos o horizonte de todas as estações da vida. A saudade de ver as vias sonoras de beija-flores em equilíbrio entre as rosas e o vento. A morte não é um nocaute fatal sobre a existência, o gemido do medo não acelera o retorno ao pó, mas enfraquece a chama da esperança.


Assim, a lembrança daquele dito único, do filósofo dos pesares, sob o peso de uma esperança prolongada , Angst, se lembra da sentença:
"No auge do inverno, finalmente aprendi que dentro de mim havia um verão invencível."


E era esse o sentimento de angústia que irrigavam as flores que iria decorar seu túmulo.


A resistência de não chorar, o sofisticado modo de olhar para dentro de si mesmo, uma ascese do próprio coração a impor flagelos de nostalgias.
O nosso Angst levanta-se, com as mãos bate nas vésperas das vestes para sacudir o próprio pó  que nutre a sua vida, e na sombra de uma macieira em flores, chora as desistências de seu fôlego , o respirar de todos os ciclos da infância até a velhice, os ponteiros de um velho relógio marchetando a alma para produzir uma obra de arte vital. A solidão não desgasta um coração forte, mas lapida-o com conhecimento profundo.


A sua hora chegou, a percepção de que o tempo passa torna-se o homem sensível para as coisas mais importantes. Como uma bomba relógio, Angst percebe que cada pulsar e a contagem regressiva para uma explosão de silêncio, ele abre um outro livro, ali está escrito:


"Um homem só pode ser ele mesmo enquanto estiver só; e se não amar a solidão, não amará a liberdade; pois é somente quando ele está sozinho que ele é realmente livre"


Um grito insurgente vem da alma, Angst para de respirar, o coração encerra sua marcha e a explosão da morte ocorre. Todos os silenciosos se reúnem em um só lugar, exterior e interior. Um cadáver repousa no reino da inércia ao lado do sepulcro, e longe a torre de um relógio pálido também está prestes a abandonar o tempo, e isso ocorrerá ao terceiro dia.

 

 

Extraído de: Contos Ordinários e Extraordinários

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