Flores Sem Primavera
É uma norma de a vida acreditar ser muito difícil viver uma vida isolada.
Pois bem, a história que vou narrar é totalmente desprovida de algo ordinário,
digo assim pois se trata de uma estória peculiar, porém anormal. Ela se dá num
campo de altitudes, típico desses planaltos cujo cume parece unir em matrimônio
noturno flores e estrelas. E não seria inédita a narrativa, se não estivesse
desprovida de atitudes solenes, como supor que o orvalho são lágrimas de flores
solitárias.
Uma lavanda azul vivia no campo de altitude numa montanha chamada Karmon. Sua
tristeza era visível ao coração que observa o significado profundo dos
mistérios, as borboletas e as abelhas não vinham visitá-la, muito menos ainda
os beija-flores. Não sei se percebermos, mas a complexidade da existência
começa quando não encontramos a sintonia com as coisas que complementam o
sentido e a resposta pelo qual existimos e estamos neste mundo. Quem sabe um perfumista
alcançaria as alturas, mas isso é uma aventura cujo papel na nossa vida
desempenha os alpinistas. E, se as respostas fossem encontradas?
Naquela manhã de inverno, no mar congelado de relvas verdejantes, o que se
ouvia era um ruído acústico do vento cortante. Gramíneas conversavam sorrindo,
não se sabe o que, mas estavam felizes.
Havia duas pequenas árvores ao lado, e numa noite de sonâmbulos, cravaram um
diálogo na noite, quebrando o silêncio do lugar. A árvore mais velha,
retorcida, calva de poucas folhas, ressequida pelo tempo, numa voz rouca, mas
vigorosa, explicava a mais nova que as árvores do cume eram nobres por causa da
maneira como enfrentam toda sorte de intempéries, e insistem em viver os
desafios de todas as tempestades
- A vida meu pequeno e novo companheiro consiste em viver a dureza da
existência das alturas, e depois ter a possibilidade de servir a uma causa
ainda mais elevada. Somos madeiras cobiçadas pelos homens, eles nos procuram
nós temos a virtude da dureza, então podemos ser úteis para os fins que exigem
resistência e durabilidade.
A árvore mais nova tremia ao ouvir tantas coisas, mas se sentia feliz.
E as pedras? Sim as pedras apenas viviam a vida nas alturas, eram quase
eternas, todas as noites olhavam imóveis para as estrelas e viviam fixas como
as estrelas que gostavam de contemplar.
Entre o frio e as chuvas o sol e a luz do luar, faziam votos de um perene
silêncio ante o belo e o misterioso.
Voltemos a nossa pequena flor solitária, ora, as lavandas e alfazemas viviam em
abundância lá embaixo nas campinas e vales. A fragilidade quando encontra as
circunstâncias que exigem coragem, torna-se valente pela ternura. O amor sendo
o mais doce dos sentimentos suporta as mais amargas traições. O desafio da
existência é o ser sem ser observado, mas isso não impede que a vida seja
vivida com um propósito. Muitas flores vivem a beira do caminho, mas ela
só torna-se especial para os que perceberam que elas estavam ali, não no no
caminho mas na vida, há uma diferença enorme entre algo que é por causa do
existir em si mesmo e o que é, por causa da existência dentro de nós, o que
transcende para dentro do nosso coração torna-se a excelência da nossa afeição.
A tristeza da solidão é a mais difícil de superar, então ser uma flor sem abelhas,
sem borboletas e sem beija-flores é um modo de ser limitado pela inquietação
das ausências, o silêncio da solidão tem todas as friezas da tristeza, é algo
extremamente doloroso, mas também é fértil.
A vida não é feita de quimeras complicadas, é feita de coisas simples e
valorosas, mas é necessário que se tenha percepção dessas coisas valiosas, é
possível ter tantas coisas fora de nós, e o coração vazio de alegria, o
contrário também é fato, e possível ter poucas posses e ter o coração cheio de alegria.
E às vezes devo ser franco em admitir que uma flor que desabrocha faz de um dia
qualquer dia especial e de um momento simples em um acontecimento
extraordinário, no universo todas as coisas são projetadas com um propósito.
O Karmon ao longe parecia imponente, mas um alpinista subiu até o cume, ele
estava em busca de paisagens arrebatadoras e experiências profundas.
Passeava pelos campos de altitudes com uma máquina fotográfica e um coração
aberto. Muitas vezes os homens andam com os olhos abertos, mas o coração
permanece fechado para a verdade.
O alpinista encontra a solitária lavanda azul. Os olhos de Admiração se
abriram, uma solitária flor do vale revestida de uma das mais raras virtudes, a
coragem. O belo não é frágil, pelo contrário, precisa ser forte para permanecer
belo em um mundo de horrores. Assim como os bondosos são mais fortes, pois é
necessário coragem para exercer a bondade em um mundo cheio de maldade, o
ser bondoso é um herói quando insiste em praticar a bondade aos corações mais
ingratos, assim como as flores não desistem de serem flores porque os
insensíveis pisam sobre elas.
Ainda surpreso com o achado, retira da mochila a sua câmara fotográfica e tira
uma foto espetacular de uma lavanda azul em contraste com a relva cinzenta e as
pedras daquele lugar. Difícil explicar quando você encontra algo que é
normal no vale, mas que é extraordinário nas alturas Onde nosso coração
escolhe viver, ali mesmo a alma torna-se ordinária ou extraordinária. O
alpinista olha para o relógio, percebe o entardecer e se prepara para descer o
Karmon. Alguns dias depois, a foto que ele tirou recebe uma moldura e vira um
quadro para decorar o palácio de um rei. Que a erva no campo tem seus
encantos não há dúvidas, porém a arte de viver uma vida extraordinária é a
missão dos que desejam ultrapassar os limites das possibilidades e impor a si
mesmo a coragem de enfrentar os desafios que a vida oferece.
Autor:
C. J. Jacinto
Extraído
de: Contos Ordinários e Extraordinários
Direitos
Reservados
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