A Distância Entre o Presente e o Agora
C. J. Jacinto
A maioria chamou o acontecimento de
fatalidade, mas a opinião de fato era divergente entre alguns. A queda da
civilização foi conseqüência de um blecaute moral. Bem, falar sobre um
apocalipse tão genérico é complicado, mas os setores envolvidos são de memória
curta, então os divergentes eram sobreviventes que queriam promover um bode
expiatório, para justificar a má conduta que defenderam.
O inverno rigoroso tinha chegado, um grupo de
sobreviventes ao redor de uma fogueira de livros tentavam atravessar a noite
fria, estavam discutindo a permanência na cidade em escombros, o mais
novo, um ex-estudante universitário estava relutante quanto à escolha, seu nome
era Urias.
O grupo era chamado de tribalcaim,
sobreviventes vivendo na floresta de Megido, norte do oriente.
Urias estava pensativo naquela noite, quando o
rosto era iluminado pelas chamas daquela fogueira. A noite e o dia estavam mesclados por causa de
nuvens carregadas e misteriosamente as cores desapareceram, tudo era cinza e
preto.
Naquele mundo estranho, o único som era o crepitar
das chamas, um mundo preto e branco como um filme antigo, os sobreviventes
perderam a voz, o que restava era um individualismo frio, onde cada um se
comunicava por escrita mental essa comunicação predominava no mundo
pós-apocaliptico,era o pensamento escrito no coração audível como a voz dos
antigos humanos, assim Urias pensava naquele momento:
(Estão queimando os livros de escritores russos,
lamentável, os escritores russos parecem ter o poder de penetrar na natureza
humana para expor publicamente os sentimentos e a decadência dos homens). Urias
tomou uma capa solta da fogueira, era do livro "A Tortura da Carne" e
guardou-a no bolso da jaqueta de couro.
Levantou-se e foi perambular pela mata, a noite
parecia mergulhar dentro de sua alma, sentia a palha seca quebrar debaixo de
seus passos, o cheiro da noite morta, um odor de desânimo e incertezas, como o
andar solitário sempre faz germinar o monólogo silencioso, o solilóquio da
solitude, então Urias pensou:
(A morte da civilização ressuscitou a minha
vontade de compreender a vida, agora só posso compreender a mim mesmo, o
mistério que perdura diante de tudo o que é incompreensível)
Num mundo preto e branco, tonalidades que
oscilam entre as ausências, o pesar é uma dor que a alma precisa suportar. A
experiência de quem já observou as cores, é quase insuportável, a nostalgia de
poder olhar para o passado e tentar ver o colorido das flores do campo nas
campinas das lembranças, tentar dispor de todas as tonalidades do arco-íris e aplicá-los
no mundo do faz de conta exigia um esforço interior muito grande.
Urias então pensou:
(Uma perda não consiste da ausência do que
tínhamos acesso, consistem em não ter acesso real as coisas que temos posse)
Olhou para trás ao longe viu a fogueira, um
pálido flamejar e resolveu voltar.
Sentou-se próximo a fogueira até o clarear
pálido de um dia cinzento e monótono, sem a estrela da manhã, sem pássaros
cantando sem o barulho de crianças, afinal de contas, não havia pássaros e nem
crianças.
Urias deixou a turma, cada um seguia seu rumo
alguns iam para a cidade, passavam o dia em busca de livros e outros materiais
de papel para queimá-los à noite, outros, entre eles, Urias, vagavam pelos
campos em busca de alimentos, frutos silvestres ou enlatados em casas abandonadas e
destruídas.
Urias vivia em um mundo pálido, uma realidade
daltônica ou uma ilusão viva, não sei como descrever esse cenário, mas era o mundo
mais sem graça que existia. A monotonia existencial impele a alma a chorar pela
vida, é um pesar náufrago a achar o fim do caminho antes da chegada.
Nesse mundo insólito, a colheita era o fruto da
insensibilidade, um sonho dentro de um espaço dos que se perderam dentro das
próprias paixões. Preto e branco, como fotografia de tempos perdidos no tempo.
No percorrer do espaço interior, onde os
pensamentos nascem e morrem se acendem e se apagam, Urias irriga com
sentimentos de nostalgia o seu próprio desânimo, fustigando a alma ferida com
os espinhos da monotonia.
Ele pensa:
(A solidão é um espelho e o silêncio a voz de
todas as ausências, e por ambas, percebemos a nós mesmos e confrontamos os
mistérios da vida)
As cinzas da vida tingiram o mundo de monotonia
cáustica, o fogo estranho crepita com chamas escuras, a vida cíclica,
envolta no processo de perambular em dias quase noturnos e noites que se rompem
com as chamas de fogueiras de livros. Um sistema rígido e fechado, uma prisão,
Urias compreende isso:
(Se escolhemos fechar a nossa vida para as
maiores virtudes, então desceremos para os mais obscuros calabouços de todos os
vícios)
Novamente pensa e percorre os olhos do coração
para lembrar-se do mundo original:
(O tempo é um muro que aprisiona a saudade
dentro de nós e o presente torna-se uma masmorra para quem deseja viver do
passado)
Nosso personagem chora as dores de todos os
homens, e num relance de desespero corre a esmo seguindo seu instinto, a
noite corre com ele, e por onde seguem seus passos, a escuridão noturna o
persegue, e de momento a momento, a materialização de todas as frações, sem um
cantar do galo a madrugada agoniza, Urias está cansado, em campo aberto, num
vale relvado, atônito, vê uma brecha de nuvens, uma luz do sol atravessa a
atmosfera do céu a terra, como o véu que se rasga de alto a baixo, um feixe de
luz que ilumina uma rosa púrpura bem a frente dele. Seus olhos brilham, depois
de centenas de anos sem enxergar as cores da vida, uma rosa púrpura é revelada
da realidade para dentro da sua consciência, ele está enxergando, se prostra
diante do cenário, apanha a rosa, e sai correndo e gritando a sua libertação da
monotonia, mas ao abrir os olhos, estava fora do foco da luz do sol, tão longe
quanto é a distância entre o aqui e um sonho, e olhando para a rosa em suas
mãos, viu que ela negra, tão negra como uma lua morta, sepultada no
jazigo de todos os desesperos.
Urias chorou...
Extraído de: Contos Ordinários e extraordinários
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