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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A Distância Entre o Presente e o Agora

 


A Distância Entre o Presente e o Agora

 

C. J. Jacinto



  A maioria chamou o acontecimento de fatalidade, mas a opinião de fato era divergente entre alguns. A queda da civilização foi conseqüência de um blecaute moral. Bem, falar sobre um apocalipse tão genérico é complicado, mas os setores envolvidos são de memória curta, então os divergentes eram sobreviventes que queriam promover um bode expiatório, para justificar a má conduta que defenderam.
O inverno rigoroso tinha chegado, um grupo de sobreviventes ao redor de uma fogueira de livros tentavam atravessar a noite fria,  estavam discutindo a permanência na cidade em escombros, o mais novo, um ex-estudante universitário estava relutante quanto à escolha, seu nome era Urias.


O grupo era chamado de tribalcaim,   sobreviventes vivendo na floresta de Megido, norte do oriente.
Urias estava pensativo naquela noite, quando o rosto era iluminado pelas chamas daquela fogueira.  A noite e o dia estavam mesclados por causa de nuvens carregadas e misteriosamente as cores desapareceram, tudo era cinza e preto.
Naquele mundo estranho, o único som era o crepitar das chamas, um mundo preto e branco como um filme antigo, os sobreviventes perderam a voz, o que restava era um individualismo frio, onde cada um se comunicava por escrita mental essa comunicação predominava no mundo pós-apocaliptico,era o pensamento escrito no coração audível como a voz dos antigos humanos, assim Urias pensava naquele momento:
(Estão queimando os livros de escritores russos, lamentável, os escritores russos parecem ter o poder de penetrar na natureza humana para expor publicamente os sentimentos e a decadência dos homens). Urias tomou uma capa solta da fogueira, era do livro "A Tortura da Carne" e guardou-a no bolso da jaqueta de couro.


Levantou-se e foi perambular pela mata, a noite parecia mergulhar dentro de sua alma, sentia a palha seca quebrar debaixo de seus passos, o cheiro da noite morta, um odor de desânimo e incertezas, como o andar solitário sempre faz germinar o monólogo silencioso, o solilóquio da solitude,  então Urias pensou:


(A morte da civilização ressuscitou a minha vontade de compreender a vida, agora só posso compreender a mim mesmo, o mistério que perdura diante de tudo o que é incompreensível)


Num mundo preto e branco, tonalidades que oscilam entre as ausências, o pesar é uma dor que a alma precisa suportar. A experiência de quem já observou as cores, é quase insuportável, a nostalgia de poder olhar para o passado e tentar ver o colorido das flores do campo nas campinas das lembranças, tentar dispor de todas as tonalidades do arco-íris e aplicá-los no mundo do faz de conta exigia um esforço interior muito grande.


Urias então pensou:


(Uma perda não consiste da ausência do que tínhamos acesso, consistem em não ter acesso real as coisas que temos posse)


Olhou para trás ao longe viu a fogueira, um pálido flamejar e resolveu voltar.


Sentou-se próximo a fogueira até o clarear pálido de um dia cinzento e monótono, sem a estrela da manhã, sem pássaros cantando sem o barulho de crianças, afinal de contas, não havia pássaros e nem crianças.
Urias deixou a turma, cada um seguia seu rumo alguns iam para a cidade, passavam o dia em busca de livros e outros materiais de papel para queimá-los à noite, outros, entre eles, Urias, vagavam pelos campos em busca de alimentos, frutos silvestres  ou enlatados em casas abandonadas e destruídas.
Urias vivia em um mundo pálido, uma realidade daltônica ou uma ilusão viva, não sei como descrever esse cenário, mas era o mundo mais sem graça que existia. A monotonia existencial impele a alma a chorar pela vida,  é um pesar náufrago a achar o fim do caminho antes da chegada.
Nesse mundo insólito, a colheita era o fruto da insensibilidade, um sonho dentro de um espaço dos que se perderam dentro das próprias paixões. Preto e branco, como fotografia de tempos perdidos no tempo.


No percorrer do espaço interior, onde os pensamentos nascem e morrem se acendem e se apagam, Urias irriga com sentimentos de nostalgia o seu próprio desânimo, fustigando a alma ferida com os espinhos da monotonia.


Ele pensa:


(A solidão é um espelho e o silêncio a voz de todas as ausências, e por ambas, percebemos a nós mesmos e confrontamos os mistérios da vida)


As cinzas da vida tingiram o mundo de monotonia cáustica, o fogo estranho crepita com chamas escuras,  a vida cíclica, envolta no processo de perambular em dias quase noturnos e noites que se rompem com as chamas de fogueiras de livros. Um sistema rígido e fechado, uma prisão, Urias compreende isso:


(Se escolhemos fechar a nossa vida para as maiores virtudes, então desceremos para os mais obscuros calabouços de todos os vícios)


Novamente pensa e percorre os olhos do coração para lembrar-se do mundo original:


(O tempo é um muro que aprisiona a saudade dentro de nós e o presente torna-se uma masmorra para quem deseja viver do passado)


Nosso personagem chora as dores de todos os homens, e num relance de desespero corre a esmo seguindo seu instinto,  a noite corre com ele, e por onde seguem seus passos, a escuridão noturna o persegue, e de momento a momento, a materialização de todas as frações, sem um cantar do galo a madrugada agoniza, Urias está cansado, em campo aberto, num vale relvado, atônito, vê uma brecha de nuvens, uma luz do sol atravessa a atmosfera do céu a terra, como o véu que se rasga de alto a baixo, um feixe de luz que ilumina uma rosa púrpura bem a frente dele. Seus olhos brilham, depois de centenas de anos sem enxergar as cores da vida, uma rosa púrpura é revelada da realidade para dentro da sua consciência, ele está enxergando, se prostra diante do cenário, apanha a rosa, e sai correndo e gritando a sua libertação da monotonia, mas ao abrir os olhos, estava fora do foco da luz do sol, tão longe quanto é a distância entre o aqui e um sonho, e olhando para a rosa em suas mãos, viu que ela negra, tão negra como uma lua morta,  sepultada no jazigo de todos os desesperos.


Urias chorou...

 

Extraído de: Contos Ordinários e extraordinários






 

 

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