O
Outro Lado do Espelho
Elnoke estava penteando o cabelo diante do
espelho no banheiro, atividade rotineira após o banho da noite, num lapso de
segundos seu corpo caiu inerte no chão e sua alma foi sugada para dentro do
mundo inverso e misterioso do espelho que estava a sua frente, consciente e
assustado percebeu a própria alma flutuando num universo unidimensional a olhar
o próprio corpo inerte no chão no outro lado, ele tinha deixado seu mundo real
e tridimensional. Era um acontecimento factual, inusitado, sem o
consentimento próprio, uma fatalidade desesperadora, tentou retornar, mas não
conseguia sair daquele universo silencioso, misterioso e frio, um mundo de
todas as inversões. A começar, sentia que a sua alma asfixiada, um lugar que
oprimia tudo dentro de um plano unidimensional O senso de localização o
norte parecia ser o sul e o sul norte, a impressão de que não podia
mover-se para frente e para trás, mas apenas deslizar-se para cima e para baixo
como grudado a uma parede de vidro.
Algo
extremamente estranho e agonizante.
Um anseio de voltar ao mundo normal emergiu do
coração de Elnoke, mas como? É impossível viver em um mundo de coisas
invertidas, nas entranhas desse espaço monótono o tempo retrocedia ao invés de
avançar, e da maturidade passava para uma infância sem lógica, até tornar-se um
espermatozóide, uma decadência do senso comum, um processo de retrocesso, um
caos, quando as coisas parecem sair da sua ordem normal.
Ele
pensou como pode um homem viver fora da lógica da ordem primaria em que as
coisas existem para funcionar.
Mas Elnoke conhecia seu mundo real, viveu nele,
seu corpo interagia com as funções de um universo verdadeiro, agora
estava ali, na agonia das coisas contrárias, olhou atrás de si viu o
sabonete, mas já não era um sabonete, mas etenobas, que nome estranho, e que
artefato estranho, sem cheiro, só uma forma aparente, se tomasse sua
identidade, seria agora seu nome "Ekonle" que insolência! A
função da vida é manter as coisas na ordem lógica de suas funções verdadeiras,
o mundo não subsiste pela ilusão e nem pode permanecer real pelo engano. Essa é
a lei para a vida, a cosmovisão percorre a biogênese e permanece como a lei da
unidade recíproca para manter a ordemcda continuidade.
Permanecer
num mundo de coisas insólitas e contrárias á verdade e cometer um suicídio
existencial.
E então, o que fazer? Elnoke mergulha no deslize
abaixo que parece ser pra cima. Seu mundo parecia de cabeça pra baixo, como as
funções de seus olhos fossem alteradas, de baixo pra cima e de cima para baixo,
que loucura, lembra-se de maçãs, e o que antes amava, agora odiava, pelo menos
ainda tinha um resquício de sentimento se é que era sentimento, talvez apenas
repulsa, maçãs eram objetos obsoletos sem sabor naquele mundo, e ainda sem calor
e sem frio, Como seria a água do mar? Afinal há pessoas e um mar? ou apenas
reflexos delas, sem vida, sem sonhos, sem ideais. Que coisa complicada, a
flutuação levou o pobre homem que é só alma, para um mundo escuro, um lugar que
o espelho não alcança, então precisou voltar, para a posição geográfica onde o
espelho reflete a realidade.
No desespero de sair daquele mundo perturbado
cheio de contrários e imitações, onde o verde ainda era verde e o branco ainda
branco, onde a luz brilha e retorna na a natureza sua fonte como luz, sem
sofrer alterações nos fundamentos da essência em que existe, Elnoke nota que a
luz consegue sair fora do mundo avesso no enigma do universo do reflexo, mas
uma alma na sua natureza insípida e apagada permanece ali naquele duplo imaterial
de contradições, um jazigo onde absolutos, essências e realidades ficam
expostos a gravitação de todas as decadências. Vejamos o mundo dos sentimentos,
essa força de oposição de um universo alienado, símbolo da ausência de todos os
princípios, o mal pode ser chamado de bem, o ato pode parir a morte, a mentira
pode ecoar como uma verdade, pois o inverso sempre será uma contradição, a tese
e a antítese não se misturam no mundo real, se isso ocorrer, há um colapso no
sentido da realidade do algo, mas no mundo do espelho as coisas podem ser
invertidas, mas essa é a inversão dentro da ilusão.
Elnoke lutava contra uma dissonância cognitiva,
o ser favorável num mundo ilusório ao que seria oposição no mundo real, então
há uma luta interior, sua personalidade que é interior precisa corresponder-se
ao reflexo do que é, e neste ponto, o da imagem que corresponde a realidade, o
reflexo ainda transmite uma verdade, mas ao refletir a palavra escrita, há uma
violação semântica, um homicídio do sentido e da conexão dos significados
reais.
Não pode existir essa distorção no mundo real, a
imagem da cruz por exemplo deve corresponder a sua essência semântica , o termo
"zurc" não corresponde a imagem, a quebra da harmonia entre fato e
verdade é potencialmente destrutivo , o mundo das inversões em que Elnoke
estava, destruía todo o sistema semântico, e então comprometia a sua própria
identidade, ele era em imagem, mas ninguém mais o conhecia pelo sua identidade
verbal.
Elnoke percebia a impossibilidade de viver nesse
universo inverso, a importância de ter um corpo com as sensações e todos os
mecanismos biológicos que interagem com o mundo físico. Acima de tudo viver
dentro de realidades objetivas, a verdade imponente como principio aplicado a
cada fator tal como é.
O universo dentro do espelho era apenas uma
imitação do mundo, não o real, tinha algumas verdades refletidas, mas eram
subjetivas e sem essência. Uma fotografia móvel, mas sem realidade. Uma
maçã tinha aparência de maçã, mas não tinha qualquer sabor, e no que diz
respeito às virtudes mais elevadas elas não existiam. Apenas imagens, e Elnoke
estava asfixiado em um sistema sem sensibilidade, pois a sensibilidade é o que mantém
o coração conectado com a essência de todas as coisas.
Por trás da realidade, a vida do pobre homem
preso ao reflexo deixava uma advertência: Quem na ilusão enxerga a verdade
encontra a esperança e quem na verdade enxerga a ilusão é tentado a perdição.
Elnoke percebia isso, além do mais notava que
perdia todos os seus sentimentos, a noção do instinto do ser parecia a única
coisa dentro de si.
O espelho é um universo ambíguo, pois e capaz de
revelar o sorriso de um rosto e ao mesmo tempo esconder a tristeza do próprio
coração.
A experiência de um mundo com forma projetada de
imitação não de realidade objetiva tornou-se um perigo.
A realidade mostra a beleza das flores e o
perfume de cada uma delas, o mundo do reflexo está condicionado a mostrar a
aparência das flores e nada mais.
Ele precisava se livrar daquela prisão, onde não
podia mudar nada, ninguém consegue alcançar a felicidade sem mudar as coisas a
sua volta, um universo asfixiado por fatos e ambigüidades, a luta de
Elnoke era a libertação, libertar-se de uma condição servil de alienação,
precisava voltar ao corpo, integrar-se novamente ao mundo real, nada mais do
que uma transcendência aos fatos, sem, contudo perder a visão metafísica da
existência.
Quando
perdemos o sentido da verdade nunca alcançamos uma utopia, pelo contrario
percorremos o caminho da destruição
Elnoke batia forte pelo lado de dentro tentando
quebrar o espelho e sair, mas era como um impotente diante da luta por
libertação precisava da ajuda de algo ou alguém que pudesse entrar e sair
daquele mundo estranho. Só então notou pela janela, uma estrela forte, o
planeta Vênus, trazendo atrás de si um fulgor, era a aurora, e com ela o sol
resplandecente que bateu sobre o espelho, e sua luz entrando e saindo, Elnoke
agarrou-se sobre partículas e ondas, e conseguiu sair daquele universo
obsoleto, o corpo em estado de inércia recebeu novamente a consciência, Elnoke
olha para o espelho e vira as costas a ele, é o mundo real que ele deseja,
respiração profunda, o cheiro das flores, a brisa refrescante os pássaros
cantando, o sorriso no rosto. É a vida como deve ser vivida e os fatos como
devem ser aceitos.
Extraído
de: Contos Ordinários e Extraordinários
Autor:
Clavio J. Jacinto
Direitos
reservados.