corpo de Calcário
Autor: Clavio J.
Jacinto
Havia no deserto de Etten um recluso, foragido do
mundo e da civilização, homem dotado de sútil percepção da vida, magro e
maltrapilho, a voz rouca e uma barba que arrastava ao chão. Seu nome era Angst.
Notável pensador solitário poeta de todas as
probabilidades e profeta sem visão futurística, o Apocalipse estava velado aos
seus olhos, o agora era sua única experiência de vida.
Angst é o pai de todas as angústias, voz que
clama no deserto, pesa mais fardo das aflições e naufraga no mar obscuro de
todas as ansiedades.
Amante de livros, leitor nupcial, em todos os
sentidos, uma sentinela acorrentada pelos grilhões da vida.
A voz rouca de Angst era a voz dos homens, cada
um deles, na nobreza do pensar que corresponde o clamor da civilização:
"Eu morri. Em Teu sopro de neblina e de luz
eu vibro, Céu, como se carregasse em mim o filamento da criação. Como se todos
os fios invisíveis do ser estivessem entrelaçados no cosmos enchendo meu
peito!"
Pasmo o pensante solitário era a voz de todos os
homens, caudaloso rio que verte até o fim do mundo, trapo restaurado pela
esperança que repousa em coração aflito, e da tempestade furiosa de
areia, assombração de furiosas náuseas, ele ouviu o atenuante filósofo das sombras:
"Pele por pele e tudo o que o homem tem
dará por sua própria vida."
Esse é o labirinto da vida, o clamor do
calcário, alma sólida em vertigens verticais, maltrapilho homem do ermo.
Angst tomou um livro de sua austera biblioteca,
imponente voz arauto de todas sonolências, o despertar do pensamento para a
verdade, quem busca os fatos não fica preso ao grilhões do engano.
Terríveis e sonâmbulos sentimentos sem sonhos, o
crepitar de estrelas de fogo fátuo , e o que mais?
Angst se senta no seu trono, a sepultura, e abre
o livro e lê a sentença de todos os breves mortais:
"Tu és pô a ao pó retornarás"
A vida é realizada na realidade da solidão, ela
é feita de oportunidade e decepções, todos temos uma jornada infinita, um
caminho a percorrer com coragem, a vida é para os corajosos, é muito fácil
celebrar nossas conquistas difícil e permanecermos emocionalmente equilibrados
em nossas derrotas.
Na abertura do livro em uma página alheia
fincada nos papéis amarelados como livros espremidos num acervo antigo, Angst
leu:
"O que dá o verdadeiro sentido ao encontro
é a busca, e é preciso andar muito para se alcançar o que está perto."
Levantando-se de seu assento de descanso, lugar
da carne feita pó, inclinações táticas da vaidade, sentimentos atávicos de
orgulho, Angst percorre com os olhos o horizonte de todas as estações da vida.
A saudade de ver as vias sonoras de beija-flores em equilíbrio entre as rosas e
o vento. A morte não é um nocaute fatal sobre a existência, o gemido do medo
não acelera o retorno ao pó, mas enfraquece a chama da esperança.
Assim, a lembrança daquele dito único, do
filósofo dos pesares, sob o peso de uma esperança prolongada , Angst, se lembra
da sentença:
"No auge do inverno, finalmente aprendi que
dentro de mim havia um verão invencível."
E era esse o sentimento de angústia que
irrigavam as flores que iria decorar seu túmulo.
A resistência de não chorar, o sofisticado modo
de olhar para dentro de si mesmo, uma ascese do próprio coração a impor
flagelos de nostalgias.
O nosso Angst levanta-se, com as mãos bate nas
vésperas das vestes para sacudir o próprio pó que nutre a sua vida, e na
sombra de uma macieira em flores, chora as desistências de seu fôlego , o
respirar de todos os ciclos da infância até a velhice, os ponteiros de um velho
relógio marchetando a alma para produzir uma obra de arte vital. A solidão não
desgasta um coração forte, mas lapida-o com conhecimento profundo.
A sua hora chegou, a percepção de que o tempo
passa torna-se o homem sensível para as coisas mais importantes. Como uma bomba
relógio, Angst percebe que cada pulsar e a contagem regressiva para uma
explosão de silêncio, ele abre um outro livro, ali está escrito:
"Um homem só pode ser ele mesmo enquanto
estiver só; e se não amar a solidão, não amará a liberdade; pois é somente
quando ele está sozinho que ele é realmente livre"
Um grito insurgente vem da alma, Angst para de
respirar, o coração encerra sua marcha e a explosão da morte ocorre. Todos os
silenciosos se reúnem em um só lugar, exterior e interior. Um cadáver repousa
no reino da inércia ao lado do sepulcro, e longe a torre de um relógio pálido
também está prestes a abandonar o tempo, e isso ocorrerá ao terceiro dia.
Extraído de: Contos Ordinários e Extraordinários
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