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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O Soldado Descalço



 

Um soldado recém chegado da batalha foi convidado a palestrar na Associação Pró-vida de sua pequena cidade, o nome do soldado era Daryon.  O salão da associação estava lotado, muita gente de bem compareceu.

Todos estavam ansiosos para ouvir a palestra de Daryon, embora estivesse tranqüilo quanto ao assunto, subiu no palco, acenou para todos pedindo silencio e começo seu grande discurso no Pró-vida:

- Bom dia meus prezados ouvintes, sou um sobrevivente das batalhas do Norte, por motivo de um ferimento nos olhos, retornei para minha cidade e meu lar. Prezo pela associação que defende a vida, eu também sou um defensor. Fui posto nas condições de front, vi muitas vidas ceifadas enquanto mina metralhadora “cuspia fogo”. Faz parte da vida de um guerreiro. Confesso que a primeira vida que tombou morta diante de meus olhos me deixou triste, mas quando presenciei o décimo cadáver já estava feliz. Quando a graça perde-se dentro do coração por presenciar tantas desgraças, nada mais resta senão ser feliz com as tragédias. É como o homem acostumado a escuridão, qualquer luz que se acenda diante dele, irá pertubá-lo e odiará ela. Não floresce na alma aquelas virtudes que precisa de amor, o campo minado mata a carne dos combatentes e a alma dos sobreviventes.

 Eu mesmo insensível quanto à borboleta que voa, prefiro esmagar formigas, é difícil explicar com precisão, como ter a experiência da morte de si mesmo quando na verdade se está ainda respirando.

 Aquelas montanhas pontiagudas parecem apenas espadas de aço que rasgam meu espírito aventureiro, a alma está nua, a vida parece apenas um enigma que não se resolve, se extingue.   A liberdade foi embora, a primeira coisa que morre dentro de nós é a paz noturna, a guerra nunca termina para um homem que sobreviveu. Nas noites mais escuras quando a mente mergulha nas profundezas do sono, ali mesmo as bombas explodem, não há lugar dentro de nós que não se incendeiem, os cadáveres mutilados impedem que as flores desabrochem, a fumaça dos canhões impedem que o azul celestial brilhe sobre nossa esperança. A vida na guerra o que é? Fui à busca de respostas, mas os mortos nunca me responderam. Os vivos, eles ergueram os ombros e ignoraram minhas perguntas. Então eu poderia chorar, mas o soldado inimigo me insultaria, pois quando o ódio prevalece, as lagrimas são símbolos de covardia, nunca de arrependimento. Aliás, chorar de medo pode ser algo ridículo, quando na verdade deveríamos chorar de compaixão.  

 Na guerra não há esperança, a primeira a morrer dentro de nós é a sensibilidade, e se cedermos a essa morte, os sentimentos descem aos abismos, e quando voltamos de lá, devemos carregar um enorme coração de gelo, um peso enorme que congela todos os sorrisos. Se a mulher de Ló transformou-se em estatua de sal quando se voltou para Sodoma, nós nos transformamos em estatua de gelo quando saímos da guerra. Eu vi a vida fugindo, louca e sem destino, como uma âncora sem águas, de longe estava pálida e acenava para amigos e inimigos com um filosófico adeus, vi o portal das batalhas,campo de fugas de nossos sonhos, lá estava escrito e epítome do pensamento pessimista: "a vida é um processo constante de morte". Então aos rogos, na trincheira entre ratos e a lama, a fumaça tóxica e os gritos de agonia, não havia lugar para o êxtase místico, somente o ruído das engrenagens da vida se despedaçando em carne ferida e granadas, fogos de artifício do luto, o numinoso era apenas uma utopia que não podia transcender e repousar sobre os soldados falecidos. Ouvi o cantarolar de balas perdidas que atingiam homens que perderam a vida, homens perdidos no caos e atormentados pelo odor do sangue alheio. Eu perdi o juízo por um instante, joguei o fuzil ao lado e fora da trincheira tomei a frente da batalha cantando o provérbio cartesiano: "penso logo existo", as balas eram como naves eternas que arrebatavam a vida dos soldados para a eternidade. Ouvi um eco , um trovão sólido que me jogou para o alto, cai na terra que cheirava pólvora, meus olhos estavam doendo muito, não enxergava nada, meus ouvia uma sirene fúnebre , parecia uma canção sinistra, e fiquei ali mesmo onde cai, de face aturdida, parecia que estava mergulhado num buraco negro,  universo paralelo de todos os meus desesperos, então perdi a esperança, percebi que meus olhos estavam feridos,  a piedade se apoderou de mim, pensei que estava morrendo, seria mais um entre os milhares que matei e outros milhares da minha tropa que morreram.
Acordei no escuro, olhos envoltos em faixas, nas percebi que estava deitado em uma cama, era o hospital, recuperado do ferimento, algumas semanas depois, fiquei sabendo que a guerra se intensificou e muitas vidas estavam tombando no campo de batalha, resolvi me preparar para voltar à guerra.

Os presentes ao ouviram o discurso de  Daryon aplaudiram com grande êxtase e choraram emocionados com as palavras e a postura do soldado.


Daryon  percorreu o auditório, abraçando os mais emocionados, depois de alguns minutos, tomou sua mochila cheia de granadas e o fuzil e partiu. Pela janela da associação os participantes do encontro olhavam pela janela, até o bravo soldado desaparecer no fim da rua. Daryon partiu para a guerra novamente, com sua farda cor de luto e descalço.

 

Fim

 

 

 

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