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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O Susto


 

Durmo

Os ventos agrários sopram

Pó cósmico de todas as ternuras

Acalma-te minha alma

O sono nos liberta da servidão

Vejo lampejo de ouro e seda

Um tapete em aglomerados siderais

Um sonho que se desintegra

Um trovão insólito

                                   a tosse

Delírios e sufrágios na estiagem

O sorriso árido e a língua ressequida

Transbordamento de sustos

Como se a vida me inundasse de tempestades

 

C. J. Jacinto

 

 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A CONCHA



 

O mundo imaginário faz fronteira com o mundo dos sonhos, e foi lá que fiz meu passeio na ultima noite, cheguei ali na praia das pérolas, uma imensa faixa de areia ao norte do mar polar, onde o céu  permanece rubro por longos meses. Uma brisa fria se misturava com o cheiro do sal enquanto as ondas se movimentavam como uma eterna sinfonia, todas as gerações de homens se desfazem perante o movimento dos mares e aquele rumor típico de um motor acústico que se abate sobre os grãos de areia, como uma estrela que se amortece na queda.  

  Nesse mundo imaginário, onde poetas passeiam e os  cantores dançam, lugar onde crianças perambulam como multidões incontáveis de seres que conhecem tão bem este lugar, estava eu, sublime olhar entre o vento, a nave de meu coração flutua, um pulsar de emoções uma explosão de ideias.

 Oh! Quantas pérolas douradas, me sentia em uma nova infância, uma viagem ao passado, na sensação quase inocente onde parecia que aquelas arvores de natal cheia de bolas acrílicas estavam adormecidas naquele lugar esperando o mês de dezembro.

 Mas eram pérolas, milhões delas sobre a praia, uma exposição de galáxias de espelhos que refletiam a luz possante do sol. Eu queria todas as pérolas, e enchendo as mãos pensava num meio de sair daquele lugar sem passar pela decepção de acordar com as mãos vazias.

 Foi então que percebi um choro, um lamento suave, um fluir sonoro de dores, olhei muito atento tentado descobrir quem estava sofrendo, e  bem próximo aos meus olhos,  ali estava uma concha, e dentro dela um ser quase informe, uma espécie de alma, fixa como a tinta no calcário,  vivendo dentro de uma fortaleza em duas metades que se abrem e se fecham para a vida, uma espécie de desabrochar para as aflições, uma abertura da vida frágil para os tormentos da existência.

 Se o molusco chora, bivalve acorrentado pela tristeza, também deve falar, pensei, e me ajoelhando, vi o pequeno ser que parecia feito de lágrimas congeladas pelas tribulações, soltando gemidos mas não disse sequer uma palavra, apenas um movimento de angustia sacra, numa luta efetiva, num movimento dinâmico de desespero por ter sido ferida por um agudo grão de areia que rasga como a espada que transpassou Cristo no Calvário, perpetuando porém uma ânsia de morte, como se a formação de uma pérola fosse mais importante que a morte, como se a lapidação fosse a suma da vida.

Naquela tarde, vi a minha própria indignidade e devolvi todas as pérolas que tina em mãos, jogando-as novamente na areia. Eu pensava comigo, quanto tempo estava àquela criatura na reclusão gemendo quase uma eternidade para formar todas aquelas pérolas? Parecia um ser que existe para tomar para si todas as dores do mundo, sem nunca se cansar das chagas que atormentam a vida. Um herói feito de fragilidades, numa dança quase cósmica na beira da praia a competir com o numero de grãos de areia, a quantidade de pérolas, E se cada uma delas, no brilho que multiplica á outra, somasse todos os “ais” necessários, um ribombar ecoaria pelo universo e assustaria todas as estrelas.

Não tive palavras para descrever essa ressonância de amofinações que tecia a tapeçaria de todos os transtornos. A continuidade daquelas dores, que numa existência caustica se sentia feliz por cada pérola que nascia num parto naufrago, estabelecido por gritos e marcados por cicatrizes que selavam o destino de nossos sonhos.

Eu tentava entender a filosofia dessas aflições que produziam pérolas dentro de um ser tão frágil e inocente, era como se parte de mim mesmo tentasse fugir para o alto, pois as estrelas não precisam das dores para brilhar. Então, porque as pérolas nascem na dor para refletir a luz das estrelas?

 A vida torna-se um enigma não pelo sorriso, mas pelas aflições.  Não pelo conforto mas pelo confronto, não pelo aconchego mas pelos espinhos, pois no útero das dificuldades mais intensas as letras de um poema pegam fogo, a luz da sabedoria parece mais forte quando nasce dentro da humildade, a glória da esperança parece mais radiante quando nasce no sofrimento, e como a mecânica da abobada celeste, num movimento pesado e sofrido consegue remover  todas as colunas da noite e custasse um grito de esforço que alcança as profundidades de um ser que agoniza pela conquista, numa resiliência nobre, alcança êxito depois de remover o eixo da escuridão e a luz da aurora na radiância dourada invade a vida, assim estremece minha alma, pois meu coração não entende o sentido da dor, mas se beneficia das bênçãos que ela pode trazer. Eu me levantei, não quero pérolas, quero compartilhar da dor de um molusco solitário dentro de uma concha, percebo a missão da vida, e não se trata de ser feliz pelas posses, mas pelo despojamento delas, e ainda mais,  alcançar o propósito da minha existência e entender a causa das dificuldades, pois a minha volta estavam as pedras que nada sentem, elas estão ali imóveis, não reagem se são feridas e não choram o desamparo da própria condição, parece uma condição de plena felicidade, mas elas não produzem pérolas.

 

Extraído do Livro “Contos Ordinários e extraordinários”

C. J. Jacinto

Direitos Reservados –

 

A NOITE

 


 

Eu vi a ultima estrela da noite partir

Sem levar consigo minhas aspirações

Fiquei tão triste por seguir em belo dia

Carrego comigo este fardo de tantas dores

 

As nozes se quebram na longa estrada

São naus conduzidas por vozes de lamento

Camelos vermelhos que cruzam o destino

Levando consigo a erva seca do deserto

 

Vem o terceiro dia do ultimo silencio

As vozes férteis de um oceano infinito

Como hálitos de lírios em campos silvestres

 

Quando a noite fenece como um trapo lavado

Um oceano celeste no outro amanhecer escoa

Aquecendo minha  débil esperança na ressurreição

--

C. J. Jacinto

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Limoeiro

 Sou cativo por essas flores

Os limões e as flores do limoeiro

A carência do mel na lua

As flores brancas da laranjeira


Sou cativo aos cumes dos sonhos

As nuvens ígneas do entardecer

Na calma que se encontra nas alturas

Estrelas que tocam harpas noturnas


O amor na minha alma tão alva

Ao farfalhar das folhas silvestres

O cheiro poético do capim santo


É o amor nesse ambiente secreto

O leme do navio de algodão

Um sonho dourado que vem do coração

 

C. J. Jacinto

O Funeral

 

O Funeral

 

 Foi um acontecimento inusitado, épico, pra falar a verdade memorável! Aconteceu muitos anos atrás numa cidadela esquecida pelo tempo, um lugar pacato cheio de pessoas simples, num canto esquecido deste planeta. Eu estava lá, presenciei o acontecido e registrei por se tratar de um acontecimento que foi singular, que marcou a minha vida e de todos os que estavam presentes. Certo homem de meia idade, muito conhecido naquele lugar, um bom homem exemplar, sua reputação não era maior por causa de um problema que há no homem moderno: insensibilidade. Essa doença de caráter que tanto amortece nossos corações e nos fazem parecer pedras ambulantes dotadas de órgãos vitais apenas para andar, comer, dormir e  respirar. O homem faleceu de forma inesperada, uma surpresa do destino que a morte súbita tenha encontrado aquele homem naquela manhã de outono. De repente a cidade ficou em choque, não é um fato inédito que de corações empedernecidos venha nesses momentos trágicos serem sacudidos em acontecimentos e tragédias que ressuscitam do coração de pedra, corações assolados por uma boa medida de espanto e tristeza. O pobre homem morreu deixou um legado de admiração por sua sensatez e sabedoria, mas o que serve tudo isso para uma sociedade egoísta e insensível? Bem, a propósito, num funeral todos querem manter o status de que são humanos, até porque surge aquele sentimento de que a morte devora o outro e nos poupa. Se há um lugar onde as pessoas se sentem supostamente mais humanas é frente a um cadáver exposto, apresentando a mensagem eloquente e silenciosa, onde muito se aprende sem que o cadáver diga uma única palavra. Ali estão os que derramam lágrimas e os que trazem os elogios, tudo isso mais por remorso escondido do que por sentimentos de perda.

Mas o falecido deixou uma mensagem escrita, era sua ultima vontade, o ministro religioso, responsável pelo rito de despedida frente a comunidade, ficou meio constrangido, era aquele um momento que poderia revelar a sua importante erudição religiosa frente aos presentes que estavam ali naquele tão celebre momento onde famílias se reúnem e se lembram que os parentes existem, o funeral é um retorno a realidade nua, quando toda a vida os homens se vestem de indiferença cadavérica, no final das contas não sabemos quem está mais morto, o cadáver ou os que fazem seus últimos elogios a ele.

O pequeno escrito, uma espécie de testamento que o falecido deixou, inverteu o papel das circunstancias. O morto falando aos vivos e o ministro religioso com a carta na mão, olha muito sério e meio constrangido para a multidão ao redor da urna funerária onde o falecido jazia como o belo adormecido no centro das atenções, as vezes o morto perdia a posição do centro das atenções, quando aparecia uma senhora, coisa rotineira em funerais, aos prantos gritando e chorando, tentando assustar o falecido com uma chuva de lágrimas e gritos, mas era aquele momento de silencio suspeito, explicar o sucedido, e a surpresa da ocasião, quebrado a tradição social, onde todos esperam ouvir um ministro religiosos abrir a caixa de elogios, para revelar todas as virtudes e benefícios que o morto fez aos vivos, recheando a mensagem com um belo sermão espiritual de consolo aos vivos.

Abrindo a carta, escrita à punho, quando o bom homem ainda vivia, o ministro religioso, faz uma pose de erudito, olha firme para a multidão e então explica, que o falecido que dar um discurso em seu próprio funeral.

Abrindo a carta, toda a multidão ao redor do caixão, permanece atenciosa e séria perante o ministro religioso, essa novidade faria com que o evento inédito viesse enriquecer a historia e a tradição da comunidade.

 

Eis a mensagem:

 

“Meus queridos amigos e familiares, vivi toda a minha vida nessa cidade, fui um homem honesto, ajudei quem precisava de ajuda e sempre aconselhei quem precisava de ajuda. Não preciso de vossas flores, pois um abraço em vida valia mais do que essas flores que agora me são inúteis. Porque a multidão presente, muitos anos vivi sem que ninguém se lembrasse de mim, e um sorriso que pudesse receber em vida vale mais do que todas as lágrimas recolhidas na minha morte. Quantas vezes estava eu sentado na praça, e vós passastes de largo, pois a pressa do compromisso era mais importante do que um breve momento ao meu lado. Vivi eu tanto tempo, nunca recebi da maioria de vós um presente, e hoje quando minhas mãos não podem colhe-las, me trouxeram flores, era mais importante que ouvisse em vida uma palavra de amor, do que mil palavras de pesares que já não posso ouvir. A ausência do calor de uma amizade é mais importante do que a vossa presença na frieza da morte.  Eis muitos de vós anunciam uma saudade no futuro quando no passado nem sequer se lembraram de mim. A porta da minha casa estava sempre aberta, mas é na porta do cemitério que vocês irão entrar para me acompanhar até minha sepultura. De nada me vale os aplausos que não posso ouvir, de nada adianta a admiração que não posso prestigiar, de nada adianta a amizade que morreu por não ser cultivada e só germina por um momento quando um amigo morreu.

No meu silencio, nesse mar de inércia, o teatro dos sentimentos não valem, minha partida segue para o mundo do esquecimento, e ao me homenagearem, colocarão meu nome em uma rua da cidade. Aqueles que irão sugerir isso são os mesmos que passaram por mim na mesma rua e nem sequer me deram um bom dia.  Minha partida para um mundo distante é apenas uma jornada em um caminho amplo onde vós todos também irão. Os dias se passaram e as oportunidades se foram, comigo vão meus conselhos e minha sabedoria, não é perda de uma pessoa que se lamenta, na verdade o motivo da lamentação é outro; a falta de gratidão, pois os que tiveram a oportunidade de terem um amigo verdadeiro tiveram a oportunidade de ser feliz, um homem de honra dará sempre honra para seus amigos, um homem sábio dará sempre sabedoria para seus amigos, um homem de virtudes ensinará a virtude para seus amigos, o legado que deixei a cada um vós é mais importante do que os prantos e lamentações, mas se não há legado, então vossa tristeza é a reação do vosso arrependimento, muitas mortes ensinam que o cadáver perdeu menos do que os vivos.”

 

No fim da leitura do discurso, os que estavam presentes se sentiram ofendidos, e o cadáver ficou sozinho no funeral e um silencio permaneceu como um muro entre a saudade e o desespero para sempre...

 

C. J. Jacinto