A Carta
Dois peregrinos descalços caminhavam pela Rua Áurea,
um ia a encontro ao outro, um vinha do Sul e o outro do Norte, o primeiro
trazia uma carta para apresentá-la ao segundo. A Rua Áurea era uma
estrada transcontinental, começava no fim do mundo e terminava no mundo sem fim.
O
peregrino que vinha do Sul estava caminhando há muitos anos, o que vinha do
norte apenas alguns meses.
Os temporais da vida e os furações mais
furiosos eram pavios que acendiam a aurora boreal, o desgaste do tempo que
passa, a entropia rasgou as vestes do peregrino do Sul, ele agora era um
farrapo ambulante carregando uma carta, ele era o apóstolo das tribulações, o
profeta de todas os temporais.
Eis um caminho de sarças e espinhos, rosas e
dromedários, fontes adormecidas na noite sem orvalho, o gás lacrimogêneo
de nossos desesperos e a figura nativa de um homem imponente que tem uma
mensagem, e, pelos campos imaginários prossegue sob a luz do luar, noite e dia
prosseguindo por enigmas de poeira que é a tinturaria na urdidura de nossos farrapos.
A grandeza da luz sob a aurora imponente de nossa
esperança, é o clímax de nossas motivações mais puras.
Passo a passo, um ao encontro do outro, marcha
orquestrada por um objetivo, a seqüência de cada dia é uma aproximação, a vida
prossegue nessa peregrinação.
O peregrino que vinha do Sul, olhava ao longe a
estrada empoeirada até a linha do horizonte, um íntimo infinito na tapeçaria da
existência, como se o coração de cerâmica fosse um vaso a guardar em depósito
um mistério.
Na sua
bolsa, a carta. Selada e bem guardada, o que estava escrito nela, ele não
sabia, sua missão era encontrar o peregrino do Norte, abrir a carta, num ritual
de poeta lúdico, ler em voz alta, fechar a carta e entregá-la e voltar para o
Sul.
Mas a viagem épica durava o tempo quase eterno
de uma existência, a percepção do agora em cada passo e o espaço de cada
instante. A noção de viver com um propósito é a mais sublime percepção do ser
diante dos mistérios da vida.
As
pérolas da satisfação estarão sempre incrustada na coroa de nossas
realizações. Nenhuma dificuldade é capaz de amedrontar àqueles que da noite
mais escura, descobriram o caminho do amanhecer.
Os terminais da vida são pródigos em nós
oferecer surpresas, ali estava o peregrino com a sua bolsa,
descansando naquela manhã esplêndida. Os pássaros cantavam e aquele cheiro de
mato molhado de orvalho parecia uma fatia de paraíso onírico, algo que coloca
em óbito profundo aquele sentimento de desânimo. A terra silenciosa é o
fundamento de seus pés, o ar do outono e as montanhas azuladas distantes, um
destino que escondida à marcha do peregrino do Norte.
Aquele foi um dia descanso, até o cais do porto
do entardecer, o peregrino do Sul permaneceu sentado debaixo de uma amendoeira,
no advento da primeira estrela do Norte, onde as auroras boreais despertam, o
Peregrino levantou-se e prosseguiu a sua jornada noite adentro, firmando seus
pés na estrada empoeirada.
Essa
peregrinação, um mergulho no silencioso destino onde a solidão é a companheira
constante. Nessa ausência vem o cultivo do pensamento fértil, o manancial da
inspiração, se o coração é forte, não enlouquece, mas torna-se mais sábio, pois
a solidão é uma lapidação da alma.
Montanhas
e nuvens estão diante da paisagem do norte, as folhas do outono estão
adormecidas na beira da estrada, é uma manhã tranqüila, depois de uma noite de
marcha. Uma ponte logo à frente e um córrego com águas cristalinas e o barulho
típico da água correndo, pássaros cantando e um aroma de flores silvestres. O
peregrino do Sul, está agora no cume de uma campina e diante dele a estrada
serpenteia, é o vale de Pison.
Aquele que consegue libertar-se de todas as
fantasias de uma civilização materialista encontra na ausência das coisas
descartáveis a realidade das coisas verdadeiras e preciosas.
A percepção do encontro breve está no coração do
peregrino do Norte, ele é um moço vigoroso, alguém que luta contra as próprias
vaidades, está consumindo a vida como um andarilho que saiu ao encontro de
outro peregrino, para receber uma carta e levá-la ao Norte. As asas das
borboletas cantam e as flores dançam, quando faltam as palavras que se encaixam
para decifrar o enigma da beleza, então a natureza das coisas puras e frágeis
poetizam como que por imagens, e só os sensíveis percebem o espetáculo.
Assim das flores que na beira do caminho se
encontram, singelas no vestido da simplicidade, são lâmpadas de cores em ondas
de perfumes, elas estão ali, pequenas e abundantes em todo o percurso, mas a
multidão nunca percebe que elas estão ali, e só os poetas entendem que elas
desabrocham para amenizar o caminho dos que enxergam a profundidade da
realidade.
Em suma,
somente corações especializados na sensibilidade podem enxergar algo especial
nas coisas mais comuns.
Há um mistério místico na fé, pois que na marcha
pela vida, mesmo que o passado a cada minuto se torne distante, Deus nunca está
ausente na nossa solidão.
Mais um dia vai chegando aí fim, é uma tarde
dourada, nuvens em brasas e brisa silvestre nos campos. O peregrino do Norte
reúne algumas palhas e ali debaixo de uma árvore faz seu leito de descanso.
Chegou o dia do grande encontro, o momento da
entrega da carta, um peregrino ancião e outro jovem. Ao longe, um pequeno ponto
em movimento, enxergou o peregrino do Sul, que observava o longo caminho reto
entre dunas de areias e palmeiras. O momento da emoção, a carta dentro da
bolsa, o fim de uma missão e o início de um retorno.
Passo a
passo se estabelece um sentimento nobre, o fim de um propósito se alcança pela
resiliência, a conquista de trabalho se dá pela superação de muitos obstáculos.
Ao meio dia estavam os dois frente a frente, o
peregrino do Sul faz o sinal típico de reverência, saudando o jovem peregrino
do Norte, abre a bolsa e retira de dentro um pergaminho é a carta. Ele rasga o
selo e abre a carta e faz a leitura:
"A equidade é um caminho de poucos, a
justiça está sempre submissa ao amor, sacrifica-se a opinião própria para que a
verdade se sustente por fatos evidentes,
o ódio é alimentado pelas sombras da confusão,
mas a substância que sustenta a vida real é a fé. Tenhamos sempre paciência,
pois a genuína justiça mantém-se em equilíbrio pela conduta de poucos homens”.
O Peregrino do Sul fecha a carta e entrega ao
peregrino do Norte, nesse momento eles se abraçam e se despedem. O peregrino do
Norte leva consigo a carta e a velhice enquanto o peregrino do Sul retorna com
a juventude para a sua terra.
C. J. Jacinto
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