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segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

A SOMBRA

A SOMBRA

Estava peregrinando pelos caminhos do entardecer, quando num descuido tropecei em uma pedra, desequilibrando meu corpo, tombei como uma arvore arrancada pelos vendavais. O impacto de meu corpo do no chão lançou minha sombra por cima de mim e caiu logo a minha frente. Percebendo ela o desprendimento de mim, se levantou sacudiu o pó, e fugiu. Quando vi a fuga, gritei:
- Ei!
Mas ela nem olhou pra trás e flutuou correndo como uma nuvem de betume, numa velocidade além de minha capacidade de alcançá-la. Penetrou na floresta para tentar se livrar da minha perseguição, mas penetrei também pelo interior da mata, buscando a foragida. Quem pode andar neste mundo sem uma sombra que o acompanhe diante da luz que resplandece? Sem minha sombra, as pessoas dirão que sou um fantasma, um ente sobrenatural, um enigma, ou seja lá o que for, um exilado.
Mas o tormento da busca logo começou, a floresta esconde outras sombras, esconde mistérios e perfumes, o aroma da floresta é digno de uma aspiração, aquela do fundo da alma e enche a imaginação de breves pensamentos, é difícil explicar o cheiro do mato, um aroma de pedra e ar úmido? Com certeza, o ambiente é um alento pra minha sombra.
Mas ela está despida da sua essência, e indigna de andar só, está ali a espreita em um canto de um arbusto, vejo o pulsar de um coração, é a sombra de um homem e não de uma arvore.
Quando passa aquela jovem, não sei de onde partiu nem pra onde vai, a minha sombra salta a frente e ela se assusta, tão horrorosa cena, a minha sombra agindo da maneira como não quero, uma raiva dentro de mim, preciso me apossar de volta, ela é minha, me pertence, faz parte do meu corpo e de meu ser.
Quando percebe minha presença, corre desesperada, a moça por um lado e ela por outro e eu correndo atrás da minha sombra, que encontra um cavalo a beira do caminho, e num salto súbito, também assusta o Cavalo e até os pássaros tranqüilos nas copas mais altas das arvores mergulham no céu num medo desolador, como se ali um monstro etéreo, um algodão embebido em betume se desprendesse do fim do mundo.
A épica busca pela minha sombra desprendida, correndo de uma lado pra outro fugindo de mim, como se eu fosse o opressor não termina nos limítrofes desta loucura inesperada.
A fugitiva se esconde atrás de uma amoreira, estendo meus braços para tentar agarrá-la com minhas mãos, mas percebo que ela é densa, imaterial, um enigma dantesco, uma celebre nevoa projetada pelo meu ser, desprendida de mim, parte de mim mesmo que se desprendeu como um corpo celeste fora da sua orbita numa queda livre para o lugar nenhum.
Num salto, ela sobe como um relâmpago inverso e se infiltra nas nuvens tempestuosas que se aproximavam indicando o tempo ruim, a moléstia sombria dos trovões, o impacto da minha sombra com as nuvens carregadas de explosivos, ribombeiam trovões, os homens morrem de medo, os animas se escondem, o mar se agita, as arvores tremem, a natureza é sacudida e eu enfrento a tempestade, como disse certo poeta “A tempestade é a falsa noite”. O vento sul sopra, derruba as fortalezas da coragem, a ventania assombra o mundo mas não assusta minha sombra, eu vejo ela caindo como um anjo que abandonou a sua habitação, dou um salto para agarrá-la, mas ela consegue fugir, é um caos a minha cara na lama noturna, um lapso na minha memória, mas estou lúcido, preciso recuperar a minha sombra.
 A lama é tinta no meu rosto, uma narrativa poética do meu desespero, a minha sombra é um vulto noturno que espanta a noite, atravessa o mármore da lapide e espanta os mortos, atravessa a parede das casas e leva pesadelo aos vivos, atravessa a censura e faz travessuras, e eu me envergonho dessas coisas.
E se eu pudesse congelar a minha sombra? Uma idéia louca, parece que estou perdendo o meu juízo, preciso me controlar, a noite está mergulhada nas profundezas do silencio, a tempestade já passou, é madrugada, ando pelas trilhas como um farrapo ambulante, já estou mais parecido nós, se continuar assim, já não haverá mais diferença entre eu e ela, quem é quem na noite escura? A noite não é o reino das sombras? Eu sou o invasor e não ela.  Mas eu preciso dela, sem a minha sombra não serei um humano quando o dia amanhecer.
 Já estou cansado, subi uma pequena campina de relvas, sentia pela respiração o frescor do orvalho, ao longe, viajam o som do canto dos galos, e eu cansado, me assento e vejo ao longe as luzes da vila distante, um amontoado de minúsculas brasas dançando no apogeu da noite. Percebo a minha sombra próxima de mim, eu decido ficar quieto, meu coração bate forte, até as estrelas que aparecem no céu sentem esse pulsar interior dentro de mim. Meus olhos estão fixos nela, mas algo me chama a atenção, uma estrela forte, um brilho vasto de esplendor que aparece no horizonte, atrás dela, um clarão que começa a empurrar a noite para longe, para o outro lado do mundo.  A alva resplandece, minha sombra treme, está amedrontada, eu permaneço intacto na minha postura sentado, não mais olhando para a minha sombra, mas com os olhos fixos na estrela da manhã, ela está lá na hospedaria do silencio da noite, como um diamante incrustado na coroa eternidade, o labor áureo da luz, a graça do orvalho vítreo no gotejar em todas as montanhas, sem muito ruído, a alva sela o novo amanhecer, e a estrela da manhã em sua ordem matutina, a maior!  Reina no céu e a minha sombra se prostra e eu vejo isto, eu me levanto, e quando percebo, vejo que a sombra está atrás de mim. O dia chegou à luz triunfou, desde então, a minha sombra se alinha ao meu destino, a minha escolha é andar diante da luz e a minha sombra sempre condicionada a seguir por ultimo, submissa a destino que tomei, ela serve apenas para indicar que sou um homem mortal.

C. J. Jacinto

Extraído de: Contos Ordinários e Extraordinários




 

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